terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Diabruras de João Miguel na telinha e na lente de um 'olho mecânico'



Colecionador de prêmios nos mais variados eventos de cinema no país, o baiano João Miguel ganha a partir de hoje, com a estreia de “A teia”, na Rede Globo, após o “BBB”, a chance de redesenhar sua carreira audiovisual na trilha da televisão. A série escrita por Bráulio Mantovani pode fazer de João, na pele do policial federal Jorge Macedo, um herói da teledramaturgia nacional como raras vezes se viu. Um herói de dilemas e retidão na luta para debelar um esquema de crime e corrupção. Ao mesmo tempo em que depura sua imagem na telinha, ele brilha em solo holandês no Festival de Roterdã à frente do longa-metragem “Periscópio”, de Kiko Goifman, onde tem exibições nesta terça e nesta quinta, levando experimentação narrativa brasileira ao exterior.


Lançado no Festival do Rio, em outubro, onde foi injustiçado pela crítica e pelo júri, sem ganhar láureas à altura de sua engenhosidade narrativa, “Periscópio” é uma alegoria sobre paranoias urbanas, solidão e o medo do outro.





Há uma hipótese de que o mundo onde vivem Élvio e Eric, dois solitários profissionais interpretados pelo ator João Miguel e pelo ensaísta Jean-Claude Bernardet no longa, esteja com os dias contados. Suspeita-se de que tudo ao redor do apartamento onde a dupla vive, confinada numa relação controversa de dependência, desconfiança e repulsa, está destruído. Mas quando um olho mecânico, saído do nada, rasga o chão do lar onde a dupla vive, sem explicação aparente, uma transformação se instaura nos personagens da produção de R$ 1,4 milhão dirigida por Goifman. No filme, o “olho-máquina” vem dar uma espiadinha em duas vidas assoladas pelo marasmo. Mas, diante de um olhar alheio, robótico, elas vão às raias de um tipo de anarquia chamado... felicidade.

— Mais do que a acomodação e a inércia, o maior mal da contemporaneidade é a sonolência provocada pelas guerras, pelo isolamento. Aquela sensação que tira as pessoas da ação. Mas em “Periscópio”, dois homens sonolentos despertam diante da esperança — avalia João Miguel, defendendo o filme de Goifman como algo além de uma metáfora sobre a histeria mundial em torno dos reality shows. E com razão...

 Periscópio” é uma reflexão sobre a alienação contemporânea, tendo em cena apenas dois sujeitos, uma cabra e um peixe chamado Jack. É uma reflexão produzida a partir do jogo cênico entre um dos atores mais requisitados do cinema nacional e um crítico de origem francesa que elegeu a cultura brasileira como objeto.

— Não trabalhamos uma significação prévia para a figura do periscópio. Encontrá-la é tarefa para os críticos, para o espectador. Trabalhamos com intuição diz Bernardet.

Entre o ator João e o crítico-ator Bernardet aparece Goifman, um documentarista premiado no exterior por filmes como “Olhe por mim de novo” (2011) e “Atos dos homens” (2006). Em “Periscópio”, ele dá um megulho na ficção após um ensaio entre a invenção e realidade com “FilmeFobia”, melhor filme do Festival de Brasília de 2008, também estrelado por Bernardet. O cineasta usou seu próprio apartamento, em São Paulo, como locação, deixando a diretora de arte Maíra Mesquita interferir no ambiente, filmado sob a direção de fotografia da cineasta Júlia Zákia.

— Existe sim uma relação com reality shows aqui. O cinema tem que estar atento a esse aspecto da vida contemporânea e observar esse cenário de super observação, por mais redundante que isso pareça. O periscópio é uma metáfora de uma câmera invasiva, com todos os paradoxos que ela representa — explica Goifman, mineiro de 44 anos que nasceu em Belo Horizonte e há 20 radicou-se em São Paulo, onde vive com a mulher, a também cineasta Cláudia Priscilla (“Leite e ferro”), e o filho, Pedro Andrade.



Na tela, referências a uma peça de Samuel Beckett (1906-1989), o texto “Fim de partida” (de 1957, também traduzido como “Jim de jogo”), norteiam a primeira parte do longa, com Eric (Bernardet) e Élvio (João) desiludidos em cena. A alusão a Beckett expressa-se na sugestão de um apocalipse nunca assumido (nem representado) de maneira realista, sugerindo uma tensão dentro de um espaço fechado. A sombra do autor de “Esperando Godot” aparece desde o argumento do filme, roteirizado por Bernardet e pelo cineasta.

— Kiko e eu não gostamos do naturalismo, nem do realismo. Consideramos os dois formas de opressão que diminuíram o leque expressivo do cinema brasileiro — diz Bernardet.

Depois que o “olho” ciborgue do título entra em cena, o conto “Casa tomada”, do argentino Julio Cortázar (1914-1984) vira um parâmetro para o paredão afetivo onde os protagonistas são encostados, em busca de novas estratégias de convivência.

— No filme, os personagens encenam, dançam para o periscópio, mas é sempre uma “farra precária”, apenas uma “alegriazinha”. Nada do glamour dos reality shows, pois no final existe um preço caro dessa ode à observação, desse amor que eles adquirem pelo olho maquinal que os observa — diz Goifman, que dialogou com filmes como “Janela indiscreta” (1954), de Alfred Hitchcock, “O inquilino” (1976), de Roman Polanski, e “O buraco” (1998), de Tsai Ming-Liang, na construção de sua narrativa.

Além de discussões existenciais, “Periscópio” toca em questões sociais do Brasil, no laço de vassalagem entre patrão e empregado estabelecido entre Eric e Élvio, cujo passado nunca é esclarecido.

— Na relação dos empregados que vivem nas casas de seus patrões existe uma confusão afetiva, uma area de exploração e dominação, que foi incorporada ao filme — diz Goifman, que confiou a trilha sonora a DJ Dolores.

Durante as filmagens, Goifman fez da liberdade criativa uma bandeira e concebeu uma sequência com João e Bernardet que chega a 12 minutos de puro improviso.

— Existe uma confusão que associa a este nosso método de trabalho uma imagem de loucura, de falta de seriedade, que é absurda. O cinema está tão domesticado, acostumado a equipes tão grandes e pesadas, que nada pode ser mudado no meio do caminho — diz Goifman. — Ter um bom roteiro e admiração por ele é importante, mas ele não pode ser um tipo de deus acima da experiência vivida no set.

 
p.s.: Segue inédito “Matraga”, de Vinícius Coimbra, longa ganhador do troféu Redentor de melhor filme no Festival do Rio de 2011 no qual João Miguel encarna o mítico senhor de terras pinçados da obra de Guimarães Rosa.  
 


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