segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um ensaio sobrenatural sobre a paternidade abre a Mostra de Tiradentes

Garimpado da literatura de Lourenço Mutarelli, "Quando eu era vivo", thriller de horror psicológico de Marco Dutra, vai abrir a 17ª Mostra de Tiradentes nesta sexta-feira. O evento mineiro, que inaugura o circuito anual dos festivais de cinema no Brasil, .tornou-se conhecido como um canteiro de experimentação narrativa. Justifica-se daí a presença de um exercício audiovisual com a grife de Dutra, realizador de "Trabalhar cansa" (2011) e a de Mutarelli, autor do romance "O cheiro do ralo", levado ás telas por Heitor Dhalia em 2006. De cara, pode-se apontar um avanço na tradição do evento - graças à curadoria sempre ousada de Cléber Eduardo -, por dar espaço, já em sua abertura, para um exercício de cinema de gênero, no caso, o terror. As trevas aqui são derivadas da prosa de Mutarelli em "A arte de produzir efeito sem causa". A sessão do longa-metragem, produzido por Rodrigo Teixeira e sua RT Features (braço brasileiro de "Frances Ha"), serve de tributo ao ator que protagoniza o projeto: Marat Descartes, um dos mais talentosos de sua geração. É Marat quem encarna um perdedor profissional que, de volta á casa paterna, convive com eventos sobrenaturais e uma mulher misteriosa (Sandy Leah). Nesta entrevista, Dutra explica como foi o processo de direção do filme. 

Como são as sombras que você encontrou no universo de trevas (e de humanidades) da obra de Lourenço Mutarelli? De que forma o livro te serviu como bússola para encontrar personagens?

MARCO DUTRA - Conheci a fundo a obra do Lourenço entre 2007 e 2008, quando trabalhei no roteiro da adaptação de um de seus quadrinhos para o cinema, num projeto que acabou não indo em frente. Foi um mergulho intenso, especialmente no que diz respeito aos primeiros livros “gráficos”: “Desgraçados”, “Transubstanciação”, “Eu te amo Lucimar”. “A Caixa de Areia” me marcou profundamente, e é até hoje um dos meus preferidos. Com os romances não foi diferente. Me parecia que o Lourenço encontrava mais detalhes e força na sua voz a cada livro publicado. “A arte de produzir efeito sem causa” tinha acabado de sair, e foi o romance que mais me tocou. É uma espécie de releitura sombria da parábola do filho pródigo, e a força da relação doente entre pai e filho retratada ali me perturbou. Todos temos as nossas questões e dilemas familiares. Carregamos essa bagagem conosco a vida toda. Eu e Gabriela Amaral Almeida, corroteirista, mergulhamos nesses sentimentos delicados e contraditórios para encontrar as vias da adaptação.


 De que maneira "Quando eu era vivo" se articula com o universo do horror e, de que maneira esse universo sombrio de gênero se articula com o cinema brasileiro atual?

O fantástico, no caso de “Quando eu era vivo”, nasce da percepção do protagonista - o filho - de que é preciso encontrar um caminho para dentro da alma do pai. O personagem - e, se tudo der certo, o espectador também - acaba se dando conta de que este caminho não está na realidade palpável. E nem pode estar, afinal estamos falando de memória, luto, fantasmas, mistérios não resolvidos deixados para trás. O horror que existe vem da subjetividade do filho, e encontra, portanto, suas razões dentro da narrativa. Não é um truque formal. O uso dos gêneros é muito saudável, porque diversifica e intensifica a produção. Nos meus anos de faculdade eu sentia certo receio e preconceito com esse tipo de abordagem, como se fosse algo mais infantil ou “estrangeiro”. Felizmente, essas noções parecem estar saindo de circulação. Temos um enorme arsenal de ferramentas para narrar, e nenhuma delas é patenteada por americanos, japoneses e europeus. Sinto que as novas gerações estão dispostas a mergulhar de cabeça no fantástico, no horror, no musical, na comédia, no melodrama. Temos apenas que cuidar para que nada disso vire apenas forma, e sim que tenha relação com o assunto, com o discurso.

 O que significa ter Marat Descartes, o muso de Tiradentes 2014 nas mãos, como ator? Como se dá a parceria de vocês?

Trabalhei com Marat em “Um Ramo” e em “Trabalhar Cansa”. É uma das minhas parcerias mais antigas, e deve continuar em próximos trabalhos. É um excelente ator, é claro, mas acima de tudo capaz de se despir por completo em nome das especificidades e necessidades de cada novo personagem.

Sua cara metade cinéfila é a cineasta Juliana Rojas, codiretora de "Trabalhar cansa". Juliana fica aonde nessa etapa de um filme solo? Que planos vocês têm juntos agora?


Juliana é montadora de “Quando eu era vivo”, assim como eu compus a trilha do novo filme dela, “Sinfonia da Necrópole”. Estamos próximos e juntos em praticamente todos os trabalhos, ainda que não compartilhemos a direção. Nosso próximo filme em parceria é “As Boas Maneiras”, uma fábula sobrenatural paulistana. Esperamos filmar ainda em 2014.

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