terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Wes nunca é o bastante


Enquanto o público brasileiro saliva diante da hipótese de ver “The Grand Hotel Budapest” para conferir os novos delírios fabulares de Wes Anderson, matamos a fome de sua obra com uma pepita em curta-metragem disponibilizada pelo mesmo no mundo digital: "Hotel Chevalier" (2007).  

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Um presente sobrenatural de Marco Dutra


Voz solitária da autoralidade audiovisual brasileira em um circuito infestado por candidatos a blockbuster, “Quando eu era vivo”, de Marco Dutra, instala-se nas telas, em um período tomado por candidatos ao Oscar, diferenciado por seu investimento na cartilha dos filmes de gênero. Com ele, o público tem a chance de provar da receita do terror a partir de um tempero nacional. É o que dá uma distinção de arrancada ao segundo longa-metragem do realizador (em parceria com Juliana Rojas) de “Trabalhar cansa” (2011). Ainda no plano das aparências, do contato mais superficial, vem a surpresa de se encontrar um Antonio Fagundes disforme, de cabeça mal raspada e pelancas caídas pelo rosto, sempre portando pequenos halteres de ginástica nas mãos.

Igualmente surpreendente é a presença de Sandy Leah num projeto assim, de horror, com dinâmica similar a dos clássicos sombrios de Roman Polanski, sobretudo “O inquilino” (1976). Entre eles, domando um cabo de guerra entre a truculência paterna e a doçura de uma jovem à flor do desejo, vem um dos maiores atores que o cinema desta pátria ajudou a popularizar: Marat Descartes, aqui no apogeu de suas virtudes cênicas.

Mas isso tudo é só a casca. Por baixo dela vem um romance, “A arte de produzir efeito sem causa”, escrito pelo mestre supremo do quadrinho nacional, Lourenço Mutarelli, a quem Marco Dutra confiou uma especialíssima participação. Do livro, vieram o carinho disfarçado da tensão de um amor entre pai e filho e um clima de mistério conectado aos estudos da demonologia como prática de fé. O que vem além daí – e grafe o Além assim, com “A” -, parte da imaginação de Dutra e da roteirista Gabriela Amaral Almeida, diretora do premiado curta-metragem “A mão que afaga” (2012). Com um molho extra: a fotografia de Ivo Lopes Araújo, o esteta visual da novíssima geração.



Marat é Júnior, perdedor nato que, após ser abandonado pela mulher e perder a guarda do filho, volta à casa do pai (Fagundes) em busca de um teto e de segurança afetiva. Há um impasse entre eles, indisfarçável aos olhos de Bruna (Sandy), estudante de música que aluga um quarto na casa do personagem de Fagundes, hoje um viúvo aposentado. O mal-estar entre os dois tangencia os infortúnios recentes de Júnior, mas origina-se na morte da mãe deste, interpretada por Helena Albergaria, atriz-assinatura de Dutra.

Ela aqui paira como uma presença espectral, alimentando um complexo de Édipo satânico, que joga filho contra pai, sob a fricção de uma força diabólica. Esta só fica clara quando Júnior reencontra seu irmão, Pedro (Kiko Bertholini, numa atuação curta mas devastadora), esquizofrênico assolado por assombrações. O encontro entre os dois é antecedido por uma ciranda de esquisitices domésticas nas qual Júnior, segundo após segundo, perde sua lucidez, assolado por um sentimento de paranoia.

Tudo é verossímil, tudo é realismo, tudo é mundano, até um clique, até o encontro dos irmãos. Daí pra frente, o filme cai nas mãos do Demônio, Marat modula sua voz numa serenidade perturbadora e Fagundes lança mão de todos os seus dotes interpretativos para traduzir a falência de um pai diante da loucura filial e da onipresença fantasma de uma mulher defunta cuja morte lhe caiu como uma bênção.

Comparações com “O iluminado” (1981) são óbvias por conta do visual descabelado e salivante de Marat como Júnior. Mas o diálogo da narrativa é maior com o terror europeu dos anos 1960/70, a partir da obra de diretores como Georges Franju (“Os olhos sem rosto”) e Dario Argento (“O gato de nove caudas”), revisitados a partir de um formato brasileiríssimo. Trata-se do primeiro grande filme nacional de 2014. Que venham mais.

  

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Descanse em paz, Coutinho


Segue aqui uma memória jornalística do ano de 2005, publicada no Segundo Caderno de O GLOBO, a fim de prestar tributo ao pontífice do documentário brasileiro, Eduardo Coutinho. Que ele descanse em paz.


 

Durante o Festival de Tiradentes (MG), de 2003, que o homenageou, o senhor disse nutrir a vontade de fazer um filme em que pessoas cantassem músicas de Roberto Carlos. Esse projeto existe?

EDUARDO COUTINHO: Nos meus filmes, adoro ter pessoas que têm uma relação com a música, que cantam. Gostaria de fazer um filme só com pessoas que lembram emocionalmente de fatos a partir das músicas de Roberto Carlos. Seria extraordinário, independentemente da discussão de que Roberto é brega. Ele atravessa a História do país.

Essa ideia sai do papel?

COUTINHO: Não. Seria muito complicado em função da autorização, dos direitos autorais. Fora que esse filme não teria limite espacial, uma vez que uma figura como ele percorre todo o Brasil. Quando eu fiz "ABC do amor" (co-produção entre Brasil, Chile e Argentina, feita em 1966, em três episódios, na qual Coutinho assina "O pacto" )... Bom, eu nem gosto de falar das minhas ficções, mas... vai lá... Nesse filme, tem uma cena em que se ouve "Que tudo mais vá pro inferno". Naquele tempo podia. Além dessa, tem a Wanderléa cantando uma música extraordinária, chamada "Ingratidão", e há aqueles... Como era o nome? Os Golden Boys. Os Golden Boys cantavam "Alguém na multidão". E não era algo brega.

O senhor gosta do Rei?

COUTINHO: Na época, gostava. Nos últimos anos, é mais complicado, né? Mas até 70 e poucos...

Em "Peões", o senhor entrevistou operários que participaram dos comícios de Luiz Inácio Lula da Silva no fim dos anos 70 e início da década de 80. Procurou até ex-colegas do presidente. Hoje, após uma série de escândalos de corrupção contra o governo PT, registrados do Mensalão para cá, o que os "peões" de seu filme têm a dizer sobre Lula?

COUTINHO: Também tenho curiosidade de saber. Ouvi dizer que o "Estado de São Paulo" mandou um repórter para São Bernardo ouvir as pessoas que falaram comigo. Se fizeram direito, não sei, mas acho que esse é um papel para o jornalismo. Não gosto de voltar ao "local do crime". Voltei no "Cabra..." porque tinha de terminar o filme. Já voltar ao "Babilônia", ao "Master"... Isso, não. Para o jornalismo, isso faz sentido. Para o cinema que faço, não. Eles não vão me dar depoimentos sobre o que viveram da mesma forma. Vão me dar dados, dizer se se desiludiram. Acho que as pessoas mais próximas ao sindicato devem continuar acreditando.

Por que não gosta de falar das ficções que fez?

COUTINHO: Porque elas passaram. Foi uma boa escola. Não me arrependo de ter feito nenhuma delas. Fiz dois longas ("O homem que comprou o mundo", de 1969, e "Faustão", de 1971) e um média ("O pacto") e foram todos mais ou menos obscuros. Escrevi roteiros pros outros nos anos 70 (inclusive o de "Dona Flor e seus dois maridos", o segundo maior sucesso de bilheteria nacional). Mas foi bom como experiência. Experiência de dramaturgia, de dirigir atores. O fato de lidar com a direção de atores ajuda no documentário. Ajuda a evitar aquilo que se faz quando se dirige um ator: os problemas de colocar a pessoa no lugar certo, ver a posição dela em relação à luz, enfim, todas as vantagens e limitações da ficção. Com personagens reais, a coisa é mais bruta. Se ele está sentado, tenho de fazer a conversa ali, onde ele está sentado.