segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Descanse em paz, Coutinho


Segue aqui uma memória jornalística do ano de 2005, publicada no Segundo Caderno de O GLOBO, a fim de prestar tributo ao pontífice do documentário brasileiro, Eduardo Coutinho. Que ele descanse em paz.


 

Durante o Festival de Tiradentes (MG), de 2003, que o homenageou, o senhor disse nutrir a vontade de fazer um filme em que pessoas cantassem músicas de Roberto Carlos. Esse projeto existe?

EDUARDO COUTINHO: Nos meus filmes, adoro ter pessoas que têm uma relação com a música, que cantam. Gostaria de fazer um filme só com pessoas que lembram emocionalmente de fatos a partir das músicas de Roberto Carlos. Seria extraordinário, independentemente da discussão de que Roberto é brega. Ele atravessa a História do país.

Essa ideia sai do papel?

COUTINHO: Não. Seria muito complicado em função da autorização, dos direitos autorais. Fora que esse filme não teria limite espacial, uma vez que uma figura como ele percorre todo o Brasil. Quando eu fiz "ABC do amor" (co-produção entre Brasil, Chile e Argentina, feita em 1966, em três episódios, na qual Coutinho assina "O pacto" )... Bom, eu nem gosto de falar das minhas ficções, mas... vai lá... Nesse filme, tem uma cena em que se ouve "Que tudo mais vá pro inferno". Naquele tempo podia. Além dessa, tem a Wanderléa cantando uma música extraordinária, chamada "Ingratidão", e há aqueles... Como era o nome? Os Golden Boys. Os Golden Boys cantavam "Alguém na multidão". E não era algo brega.

O senhor gosta do Rei?

COUTINHO: Na época, gostava. Nos últimos anos, é mais complicado, né? Mas até 70 e poucos...

Em "Peões", o senhor entrevistou operários que participaram dos comícios de Luiz Inácio Lula da Silva no fim dos anos 70 e início da década de 80. Procurou até ex-colegas do presidente. Hoje, após uma série de escândalos de corrupção contra o governo PT, registrados do Mensalão para cá, o que os "peões" de seu filme têm a dizer sobre Lula?

COUTINHO: Também tenho curiosidade de saber. Ouvi dizer que o "Estado de São Paulo" mandou um repórter para São Bernardo ouvir as pessoas que falaram comigo. Se fizeram direito, não sei, mas acho que esse é um papel para o jornalismo. Não gosto de voltar ao "local do crime". Voltei no "Cabra..." porque tinha de terminar o filme. Já voltar ao "Babilônia", ao "Master"... Isso, não. Para o jornalismo, isso faz sentido. Para o cinema que faço, não. Eles não vão me dar depoimentos sobre o que viveram da mesma forma. Vão me dar dados, dizer se se desiludiram. Acho que as pessoas mais próximas ao sindicato devem continuar acreditando.

Por que não gosta de falar das ficções que fez?

COUTINHO: Porque elas passaram. Foi uma boa escola. Não me arrependo de ter feito nenhuma delas. Fiz dois longas ("O homem que comprou o mundo", de 1969, e "Faustão", de 1971) e um média ("O pacto") e foram todos mais ou menos obscuros. Escrevi roteiros pros outros nos anos 70 (inclusive o de "Dona Flor e seus dois maridos", o segundo maior sucesso de bilheteria nacional). Mas foi bom como experiência. Experiência de dramaturgia, de dirigir atores. O fato de lidar com a direção de atores ajuda no documentário. Ajuda a evitar aquilo que se faz quando se dirige um ator: os problemas de colocar a pessoa no lugar certo, ver a posição dela em relação à luz, enfim, todas as vantagens e limitações da ficção. Com personagens reais, a coisa é mais bruta. Se ele está sentado, tenho de fazer a conversa ali, onde ele está sentado.

 

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